Uma das autoras, ainda quando fazia jornalismo em Bauru-SP , lera uma reportagem sobre os conflitos entre a Igreja Católica e os militares do Brasil . Soube, outrossim, da prisão de madre Maurina e da fundação de um grupo guerrilheiro, que teria tido o seu apoio, e entendeu que pudesse desenvolver esse tema com base em eventual resistência da Igreja de Ribeirão Preto, palco desses acontecimentos. A primeira dificuldade encontrada, como admite uma delas, diz respeito às poucas fontes de consultas, como se a cidade tivesse se encarregado de apagar a sua memória, para conservar apenas aquela de “Califórnia Brasileira”, uma imagem melhor para propagar um lugar ideal para se viver. De qualquer forma a pesquisa objetivou encontrar respostas às seguintes questões: - Em que medida a Igreja Católica de Ribeirão Preto, enquanto instituição, teria adotado uma postura contra os abusos do Regime Militar? - Essa postura teria sido de apenas alguns padres progressistas? - Maurina realmente se envolvera com um grupo guerrilheiro de oposição do Governo? Na obra, vários episódios de resistência foram narrados. O primeiro deles foi aquele da atuação, nos períodos antes e durante o Golpe Militar, do jornal “O Diário de Notícias”, de propriedade da Cúria Metropolitana, e de seu responsável Padre Celso Ibson de Sylos. No período anterior a março de 1.964, não aceitando a tese de que religião e política eram assuntos distintos, as causas abraçadas pelo jornal e por esse padre foram praticamente as mesmas das esquerdas: Reformas de base, sociais e agrária, direitos trabalhistas aos camponeses, implantação de sindicatos rurais. Suas razões: adiantaria anunciar dogmas sem atender às necessidades humanas? Como evangelizar sem tomar conhecimento da fome e do desemprego? O tempo era do êxodo rural, provocado pela reação dos proprietários rurais aos direitos trazidos pelo Estatuto dos Trabalhadores Rurais e, por consequência, dos “boias-frias” e do favelamento urbano. Tempo de inflação e carestia. Era o tempo, também, das chamadas “Comunidades de Base”, criadas pela Igreja Católica, e apoiadas pelo Bispo D. Luis do Amaral Mousinho, partindo do princípio de que ela deveria se voltar para as necessidades básicas do povo. Não apenas isso. Era grande a movimentação do Partido Comunista Brasileiro na organização do meio trabalhador rural. Para fazer frente a essa atividade de um partido ateu, no dia 02 de março de 1.963, quando já era arcebispo D. Agnello Rossi, foi criada a Frente Agrária de Ribeirão Preto, idealizada no período de D. Luiz do Amaral Mousinho, composta por vários segmentos da sociedade, e que veio a ser coordenada pelo Padre Celso. Nas reuniões com os camponeses, geralmente aos domingos, nas colônias das grandes fazendas, falava-se sobre a Doutrina Social Cristã e sobre os problemas do cotidiano: salários, moradia, escola, assistência médica, custo de vida e de alimentos. Não se insuflava a luta de classes. Diferente de Irineu de Morais, o Índio, que liderava a ação do Partidão e fazia idênticas reuniões, denegrindo a imagem do patrão, imputando-lhe a condição de latifundiário, insistindo no fim da exploração dos pobres, reclamando da influência do imperialismo americano e assim por diante...A polícia reprimia, frequentemente, um e outro grupo, não vendo qualquer diferença em suas atuações. O simples fato de se pretender organizar os trabalhadores rurais era considerado subversão à ordem. A maior disputa era para a obtenção da Carta Sindical. Aquele grupo que conseguisse obtê-la teria a simpatia dos camponeses e, evidentemente, o controle do sindicato. Daí que a batalha foi renhida. Nem precisou ocorrer a dita Revolução em março de 1.964. Já no dia 21 de fevereiro desse ano, o jornal “Diário de Notícias” não circulou. Os fazendeiros, que se diziam católicos, pediram a cabeça do padre. Eles ainda lançaram um manifesto de um suposto “Movimento Ativo Democrático”, no jornal “A Cidade”, pela religião, pela democracia e contra o comunismo. Imputavam ao padre Celso a condição de “comunista” e “ameaça dentro da Igreja”. Dois meses depois, com o Golpe, foi fechado o jornal e foram presos o Padre Celso e vários integrantes da Frente Agrária, como Gilberto Bellini, Divo Marino, Said Hallak, José Carlos Longo, Luiz Carlos Raya, Geraldo Castilho Freire e Clarimundo Alves de Souza Filho. Com a repressão, o Palácio Episcopal silenciou. Alguns padres participaram da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. Em 9 de maio de 1.964, sob a direção de D. Agnelo o jornal “Diário de Notícias”voltou a circular, com assuntos locais e religiosos, como se nada tivesse acontecido. Todavia, passados alguns meses, mesmo sob a direção do bispo, o jornal reiniciou a luta pelos Direitos Humanos publicando artigos sobretudo do Padre Angélico Sândalo Bernardino, que se destacava pelo caráter político de seus textos. O Padre Celso foi solto no dia 3 de junho de 1.964, juntamente com o advogado Said Hallak. Não retornou mais à direção do jornal. De um modo geral, a postura da Igreja em Ribeirão, até 1.965, foi de complacência para com o regime militar. Essa postura foi mudada quando os militares passaram a governar com linha-dura e recrudesceu a repressão, já tendo assumido o arcebispado Dom Felício César da Cunha Vasconcellos, que foi personagem de um outro episódio. Em decorrência do Ato Institucional n. 5, qualquer movimento contestatório era proibido. Em Ribeirão Preto, articularam-se os movimentos estudantis, principalmente os Centro Acadêmicos Rocha Lima, da Faculdade de Medicina, o Centro Acadêmico “Carneiro Leão”, da Faculdade de Odontologia e o Centro Acadêmico 1º de Setembro, da Faculdade de Direito “Laudo de Camargo”, acompanhados, ainda, por estudantes de Enfermagem, estudantes secundaristas e por aqueles jovens pertencentes à JAC (juventude agrária), JEC ( juventude estudantil), JIC ( juventude industrial), JOC(juventude operária) e JUC ( juventude universitária), todas católicas. Assim é que, no dia 21 de setembro de 1.966, na esquina das ruas Álvares Cabral e São Sebastião ( Café Única), se reuniram para seguirem em direção à sede da Prefeitura Municipal, na praça Barão do Rio Branco. À frente, uma lambreta portando a bandeira nacional. Nas faixas, as inscrições “Liberdade”, “ O Exército é o braço do Estado, não a cabeça”. Palavras de Ordem, como “Brasil! Brasil!. Dos prédios, desciam papéis picados. Passaram pelo “Pinguim”, dobraram à direita, seguindo pela General Osório. Na praça da Prefeitura, os primeiros confrontos. Os estudantes invadiram-na, subiram nas árvores. Um jipe da Polícia investiu contra os manifestantes. Acuados, os estudantes, seguiram em direção ao I.E. “Otoniel Mota” e para a Praça das Bandeiras, defronte à Catedral. Com a chegada da cavalaria, a repressão acentuou-se. O estudantes refugiaram-se no Templo, sendo espancados mesmo ali, na sede do “Diário de Notícias”, ao lado, e ainda no Palácio Episcopal. O relógio batia as 8 pancadas das 20 horas, quando Dom Felício, então com 62 anos e com a saúde frágil, saiu às ruas e, em atitude corajosa, segurou as rédeas de um cavalo, na esquina das ruas Amador Bueno e São Sebastião e, gritando “Parem com isso!”, impediu que o cavalariano investisse contra os manifestantes. Tentando ajudar, o cônego Angélico Sândalo Bernardino e o Padre Danilo também foram às ruas, constatando vários estudantes feridos, ao que mostraram para D. Felício, que interpelou, veementemente, a Polícia, bradando: “Não admito essa violência. Muito menos dentro da Catedral!” Os policiais resolveram a recuar. Dom Felício conversou com os jovens, ponderando-lhes “Eu só quero uma coisa: que vocês voltem para casa. Voces já fizeram a manifestação. Assim os estudantes saíram em blocos e foi o fim da manifestação. O episódio mais dramático, envolvendo pessoa religiosa de Ribeirão Preto, foi aquele sucedido com Irmã Maurina. Ela tinha sido nomeada diretora do Lar Santana, dedicado a abrigar órrfãos e filhos de mães solteiras, em fevereiro de 1.969. Desde o final de 1966 e começo de 1.967, um grupo de jovens autodenominados Movimento Estudantil Jovem (MEJ), passou ali a ocupar um espaço, vindo da Igreja Nossa Senhora do Rosário – Igreja Matriz da Vila Tibério. O grupo era dirigido por Mário Lorenzato. Este, um jovem católico, idealista, que procurava conscientizar os demais jovens companheiros para um trabalho social junto à população carente. Promoviam palestras, reuniões, discutiam política e até faziam bailes para arrecadarem fundos para suas obras assistenciais. Com o passar do tempo, no entanto, Mário conheceu Abrão Caixe, irmão de Wanderley Caixe, militante do PCB, que lhe sugeriu fosse, no Lar Santana, impresso o jornal “O Berro”, dedicado à doutrinação comunista. Tempos depois, Wanderley e outros companheiros, em face do dissídio do Partidão com a ala de Marighela, que deu causa à Aliança Libertadora Nacional (ALN), romperam com o Partido Comunista e resolveram também partir para a Luta Armada, criando a Frente Armada de Libertação Nacional (FALN). Consequência disso, Mário Lorenzato acabou por transformar o espaço que tinha no Lar Santana em uma célula da luta armada, fazendo reuniões, imprimindo panfletos, fazendo cartazes, etc. Aliou-se, pois, aos membros da FALN Áurea Moretti, Mário Bugliani, além de Wanderley Caixe, dentre outros. Constituída, a FALN começou a fazer “desapropriações”, apoderando-se de explosivos de uma pedreira, assaltos e concebeu a idéia de raptar o fazendeiro Aldo Pedreschi, para obter resgate, tudo pela causa. Com a repressão, todos foram presos e denunciaram a célula no Lar Santana. Madre Maurina, assim que soube da prisão de Mário Lorenzato e de sua ligação com a luta armada, procurou destruir seus pertences e do MEJ, existentes em seu estabelecimento. Com isso,em outubro de 1.969, acabou também sendo presa pela Operação Bandeirantes e Exército e acusada de ligação com o referido movimento armado. Recolhida na cadeia feminina de Cravinhos, foi torturada. Transferida para a Penitenciária feminina de Tremembé, Madre Maurina esperava o julgamento quando teve o seu nome incluído na lista dos presos políticos que deveriam ser libertados em troca do cônsul japonês Nobuo Okushi, sequestrado em março de 1.970, pela Vanguarda Popular Revolucionária. Contrariada, madre Maurina enviou uma carta ao Presidente Médice, pedindo para ficar no Brasil, mas não foi atendida. Contra a sua vontade, exilou-se no México, voltando para o Brasil somente 14 anos depois. Em razão da tortura, o arcebispo Dom Felício excomungou os delegados de Polícia acusados de serem responsáveis por ela. Tendo em vista esses episódios, embora o livro não apresentasse, ao final, uma resposta conclusiva com relação à questão inicialmente formulada, verificamos que uma opinião formada já tinham as autoras, ao final do capítulo 2, quando constataram que “ a força católica, única, unida e pronta para atacar o poder não passava de ilusão. Assim como todo o Brasil, Ribeirão tinha uma Igreja conservadora. Muitas vezes, reacionária. E, como instituição, apoiou o Golpe de 64”. Acrescentou, todavia, que “a Igreja ribeirão-pretana só assumiu uma postura ativa com o tempo. Quando os militares passaram a governar com linha-dura...”.
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